Com o regresso do calor de verão, muitos dos nossos pensamentos já estão voltados para a piscina mais cool do Baixo Minho. Assim, a nossa rubrica Milhões de Entrevistas está de regresso. Depois de no ano passado termos trocado agradáveis palavras com alguns dos melhores projectos nacionais que actuaram no Milhões de Festa, este ano arrancamos com uma extensa conversa com os mentores do festival Joaquim Durães (Fua) e Márcio Laranjeira, da promotora / editora Lovers & Lollypops.
O Milhões chega agora à sua 8ª edição, tendo as duas primeiras ocorrido no Porto e em Braga antes de se mudar de armas e bagagens para Barcelos. Quais os sentimentos que vocês têm depois de todo este caminho percorrido até agora?
FUA: Sentimos que ainda há um enorme caminho a percorrer. Tudo isto até agora foi conquistado com muito trabalho e energia mas, olhando para os objectivos e metas que já foram cumpridas, novos desafios surgem de forma natural. A edição de 2014 para nós foi como um fechar de ciclo, e os novos desafios que nos surgem são obviamente diferentes daqueles de 2006 ou 2010. O rock, no seu sentido lato, está em constante perigo de calcificação. O peso e a amplitude da sua história, as regras da sua forma, a militância dos fãs, todos desempenham um papel importante nos ciclos de inspiração mas também de estagnação. A infusão de novas culturas e sonoridades é imprescindível na construção de novas linguagens e parte da função do Milhões tem sido e continuará a ser perceber para onde tudo isto caminha.
O que vos leva a dizer que 2014 é um fechar de ciclo para o Milhões?
F: Sem qualquer descrédito pelo nosso público nacional, até porque é primeiramente para ele que fazemos este festival, achamos que aquele era o momento ideal para começar a chegar ao público lá de fora e mostrar o que é o Milhões.
E se no ano passado foi o ano zero, com as parcerias com os promotores internacionais, este ano é o primeiro em que temos uma série de media partners e outros promotores, alguns deles importantes tanto em Espanha como na Inglaterra, que nos ajudam a mostrar o quão apelativo o festival é para o público de fora. Daí considerar que esta internacionalização pensada e estruturada é um novo ciclo para o festival.
Lembro-me de no ano passado já terem a britânica Baba Yaga’s Hut como curador de um dos palcos. A ideia é continuarem com estas curadorias e parcerias.
F: Sim. A Baba Yaga’s continua este ano connosco, como também teremos outras promotoras a fazerem curadoria. A Giradiscos e a Work On Sunday como parceiras de comunicação em Espanha. Há também a parceria com a The Quietus, que é super importante para nós. Queremos daqui para a frente crescer com estas parcerias e até alargar as mesmas. Com isto tudo, posso-te dizer que fomos convidados a entrar numa rede de festivais mundial que inclui entre outros o Austin Psych Fest, o Bananada no Brasil, o Liverpool Psych Fest, o NRMAL no México… Nós não vivemos de medalhas ou certificados, mas fazer parte desta rede quase exclusiva a trazer algo de novo e independente a toda a indústria, é bastante gratificante e faz-nos sentir que estamos cada vez mais a dar passos bastante seguros.
Como é regra, voltamos a ter um cartaz bastante eclético, com nomes sonantes e de culto, assim como projetos emergentes e – ouso dizer – com bastante irreverência. É este o caminho que querem sempre trilhar?
Márcio: Quando fazes um festival como o Milhões, tendo em conta a capacidade de público do festival, o número de palcos, e o número de dias que tens, este parece-nos o caminho mais certo a seguir.
Queremos que o público viva um conjunto de experiências diferentes, desde o chill máximo, à violência extrema – é normal que umas coisas agradem mais que outras -mas procuramos sempre que de alguma forma todos os concertos e Djs mexam com quem os está a ver, tentamos ao máximo evitar a indiferença. A programação acaba por ser também o reflexo de duas pessoas, do que ouvem e do que as entusiasma, e ai é normal que a programação do festival vá evoluindo com a forma que ouvimos musica. Hoje não ouvimos o mesmo que em 2010, nem o mesmo que ouvimos no ano passado, e a programação acaba por ser um bocado o reflexo disso.
F: Desde a criação da Lovers em 2005 a génese sempre foi essa, pegar nas bandas que estão escondidas de baixo da pedra e que conhecemos e gostamos para mostrar a um público maior. O Milhões acaba por ser assim a extensão lógica dessa vontade, tendo sentido que na altura havia ainda um buraco a preencher e foi esse o impulso que tivemos. De repente, começas a (querer) deixar de parte este centralismo anglo-saxónico e procurar novas coisas, mostrando ao público que se calhar a música mais desafiante começa a surgir de outros sítios, como África, Ásia ou América do Sul por exemplo.
Mas imagino que esta vossa posição acarrete enormes dificuldades até porque, no fim, há contas para pagar.
F: Estamos conscientes das dificuldades desta decisão, aliás, que este caminho natural acarreta. Há sempre esse lado da folha de cálculo do Excel que tem de bater certo e no positivo. Mas também se não acreditasse que um festival deste tipo fosse viável nem o estávamos a fazer. Primeiro, não queremos que este seja um festival de massas porque esse não é o objectivo. Por outro lado, não queremos o festival às moscas, queremos que esgote, tendo consciência que estas coisas não se constroem de um momento para o outro. São anos e anos em que estamos a trabalhar e amadurecer a ideia para chegar a mais pessoas. Não estamos aqui a fazer uma prova de velocidade, mas sim uma prova de endurance.
M: É aqui também reside o desafio que o Milhões nos dá. Temos um leque de artistas que acreditamos, uns irão ser gigantes uns anos depois do festival, como já aconteceu, e outros não, como também acontece, mas o que nos guia é a experiência que todas estas bandas vão proporcionar ao publico e também o fator surpresa. É óptimo veres um artista que conheces a dar um bom concerto, mas para mim é mais interessante ver um concerto incrível de uma banda que não conhecia e ser surpreendido, quando não conheces não tens expectativa, estás mais aberto a receber, e um dos trunfos do Milhões será esse, veres um conjunto de músicos que seria mais complicado veres num contexto de festival e seres surpreendido por eles. No fim acaba por ser a experiência do festival como um todo a comunicar mais, e a captar mais o publico, do que propriamente um nome isolado. Não quero com isto dizer que só as bandas que ninguém conhece é que são espetaculares. Claro que não! Há bandas que enchem estádios que adorávamos ter, mas pelas limitações de orçamento e pelo próprio modelo do festival, acaba por ser mais o todo a falar, do que a soma das partes.
Notou-se que no ano passado, pese embora tivesse um dos cartazes mais apelativos de todas as edições, a afluência foi menor que em anos anteriores…
F: Não é fácil, mas o reality-check faz parte e é importante para que certas coisas sejam repensadas, nomeadamente as formas de programar e comunicar. Concluímos que a programação de risco e diversificada é o que está no nosso ADN e na génese do festival. Agora, é necessário ter formas de comunicar isso ao público, preferencialmente de maneira atempada e sobretudo através desta rede de parcerias que vai aumentando.

Outro aspecto que a mim me parece deveras importante, é o facto de o Milhões também servir como uma plataforma da cena local. Sentem o mesmo?
F: Só assim faz sentido. O facto de eu e o Márcio sermos de Barcelos é um acaso, quando nesta cidade está tão repleta de pessoas que ao longo dos tempos estão na música, não nos tops muito menos no mainstream, mas sim a percorrer caminhos mais obscuros e a partir pedra. O festival existe aqui porque, entre outras coisas, há uma enorme massa crítica e isso é importante. É a nossa base, é daqui que partimos. Sem ter uma base forte, nunca terás algo sólido.
M: Sim, o Milhões nasce de um contexto, e estas pessoas fazem parte do nosso dia a dia durante o ano inteiro, termos a oportunidade e a sorte de estarmos rodeados de pessoal tão talentoso e activo é uma dos fatores que faz com que o festival seja possível e nunca perca o sentido de localidade e da cena que o rodeia.
Do panorama local, contamos este ano com Tresor&Bosxh e Ratere. Dada a importância do festival no meio alternativo, achas significativo que possam levar o nome dos projetos da vossa cidade a um público maior?
M: Um pouco na linha do que disse em cima, estas são as pessoas com quem lidamos o ano inteiro, e gostamos do trabalho delas de uma forma genuína. Quando temos a oportunidade de colocar uma destas bandas a tocar para uma quantidade de publico maior do que o que teriam normalmente é claro que vamos aproveitar. É uma linha que seguimos em todo o festival, colocamos sempre bandas locais a tocar em horas de maior publico, de uma forma que faça sentido, a musica deles é boa durante 365 dias, e se assim o é, durante aqueles 3 merecem tocar para o maior número de pessoas possível.
F: Primeiro de tudo, duvido que no mundo hajam assim tantos festivais que, acontecendo numa cidade pequena, consigam em todas as edições ter bandas locais no line-up. Não marcamos bandas simplesmente porque são de Barcelos, mas temos de sentir que há potencial e qualidade naquilo que estão a fazer, ou então iríamos marcar qualquer banda de garagem das redondezas. O festival tem de ser merecedor das bandas, mas as bandas também têm de demonstrar que merecem actuar no festival. Claro, que nos agrada ter uma quota parte de boas bandas locais em quase todas as edições do festival, que estão lado a lado com bandas internacionais ombreando em termos de qualidade e da forma como se apresentam e encaram.
Qual a sensação de terem lendas como Michael Rother ou Deerhoof a tocarem nas margens do Cávado?
M: São duas entidades que moldam a forma como ouço musica hoje em dia, são nomes tão importantes que temos um monte de bandas que tocam no festival a fazerem pressão para tocarem no mesmo dia que elas e no mesmo palco. Achamos que este ano era importante voltarmos a ter nomes como estes, e fazer um bocado o paralelismo “de onde vens e para onde vais” com a escolha dos artistas. Mesmo o The Bug ou o Perc são nomes super importantes de um circuito, marcaram e continuam a marcar uma geração de músicos e uma “cena”, muitas das bandas mais recentes que estão no cartaz teriam um sonoridade diferente caso nunca tivessem ouvido alguns destes nomes.
F: Sem dúvida, acho que trabalhamos todos para a memória futura. Da nossa parte, quando vamos a outros festivais, também procuramos essa satisfação pessoal e sair de lá com um sorriso. Se consegues provocar isso no teu público, então o sentimento de missão cumprida está lá!
Como convenceriam os nossos seguidores a visitar o Milhões?
F: O festival vive e é especial, primeiro porque vive dentro de uma cidade super pequena, tendo todas as valências de teres a proximidade com todos os servidos e ao mesmo tempo sentes que estás no meio do nada e isso é importante. Esta disposição do recinto e a própria disposição que as pessoas trazem para a cidade, acaba por fazer de Barcelos naqueles 4 dias quase um oásis da cultura independente portuguesa e também internacional. Isso aliado a bandas
que vêm desde USA ou Reino Unido, até bandas que vêm de sítios inesperados como a Tailândia, Médio Oriente ou América do Sul, acaba por tornar isto tudo num caldeirão que dificilmente é replicado. E essa conjugação torna o festival único, para além de que esta será a primeira edição onde iremos reestruturar espaços e a forma como as pessoas sem podem relacionar com eles. Será algo que deverá surpreender muita gente.
M: Está-se muito bem em Barcelos, a comida é boa, o vinho verde também, e as pessoas são sempre simpáticas com quem vem de fora. Há Michael Rother, Deerhoof, The Bug, Peaking Lights, e, sem tirar qualquer tipo de destaque a nenhum dos nomes do cartaz, All We Are, Golden Teacher, Islam Chipsy ou Drunk in Hell vão ser daqueles concertos que marcam. (Há também a grande probabilidade de ver o Paulinho em tronco nu na piscina.)
O Milhões de Festa 2015, realiza-se de 23 a 26 de julho em Barcelos. Os ingressos para o festival podem ser adquiridos aqui.
Mais informação do festival em www.milhoesdefesta.com
Entrevista por Paulo Doellinger